sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Unidos & desunidos

Os Estados Unidos são desunidos.
Sim, diga-se com todo o acerto que são desunidos, em vez de se supor que apenas estejam desunidos.
Não nos esqueçamos da Guerra Civil que, na segunda metade do século XIX, rasgou o país em dois.
Não nos esqueçamos dos embates radicais que, depois da Guerra Civil, opuseram protecionistas e defensores do livre comércio, amigos e inimigos do padrão ouro.
Não nos esqueçamos dos conflitos raciais, que deixou sequelas inequívocas.
Não nos esqueçamos dos "anos 60", com seus confrontos entre conservadorismo e Contracultura.
Não nos esqueçamos que os Estados Unidos são, de um lado, o país das ações afirmativas, do movimento gay, do politicamente correto, do "Ocupar Wall Street"; de outro, são o país do Tea Party, do puritanismo e da fervorosa defesa do criacionismo.
Os Estados Unidos são o país da educação de alta qualidade e do entretenimento bobo; são o país do livro e da TV; são o país tanto do uso eficiente da internet e do desperdício de tempo no computador (e, no meio de tudo isso, são o país de uma cultura pop interessantíssima).
Os Estados Unidos conseguem ser, ao mesmo tempo, a maior democracia do mundo, não só em tamanho, mas em predisposição associativa e participativa, e a maior plutocracia do mundo.
Os Estados Unidos não precisam de um presidente, precisam de um equilibrista.
Sintomaticamente, o candidato democrata à reeleição, que já foi um delirante utopista, pelo menos na retórica, hoje é um pragmático centrista; deverá, sim, retomar na próxima campanha (como, aliás, já vem retomando) algo de sua retórica utópica e semipopulista; mas o Obama da campanha de 2012 será muito mais pé-no-chão.
Sintomaticamente, também, o pré-candidato republicano mais forte até o momento é igualmente um moderado; deverá, sim, fazer concessões reais e retóricas ao Tea Party, mas Romney não é Palin; seu mais sério rival, Herman Cain, deverá, sim, caso venha a ser o candidato republicano, vestir aqui e ali a capa de herói do Tea Party; mas Cain é e será sempre um homem simples do povo, com todo o senso prático – em vez de delirantes ideologias – de um homem simples do povo; suas extravagâncias apenas informam que ele é um homem do povo com estilo próprio e sem medo de errar.
Os Estados Unidos são desunidos, e por isso mesmo em 2012 escolherão alguém que os ajude a se reunir em torno de seu centro, ainda que esse centro seja estruturalmente vago e instável.

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Homem: principal vítima do machismo (2)

Uma das dificuldades que muitas pessoas têm para identificar o homem como a principal vítima do machismo reside no fato de elas considerarem vítimas do machismo apenas as mulheres.
Mas um homem que sofre violência de outro homem não pode estar sendo vítima do machismo?
E um homem que dirige sua violência contra si mesmo também não pode estar sendo vítima do machismo?
Para mim, a resposta às duas questões é um inequívoco sim.
O que diz o machismo?
O machismo diz que o homem é guerreiro poderosíssimo; diz ainda que esse guerreiro tem que vencer, senão será desonrado, porque a derrota é o apanágio dos fracos.
Pensem num soldado que, sob a ordem do comandante, se lança à linha de frente no campo de batalha; muitas vitórias dependeram desse tipo de ação ousada, despreendida; muitos homens morreram (e continuam morrendo) assim. É uma combinação de delírio de potência e forte senso de dever, associado à honra) que ajuda o soldado a ir adiante.
Esse mesmo delírio de potência, que é também uma delirante presunção de invulnerabilidade, contribui para que multidões de homens conduzam diariamente veículos automotores com enorme imprudência, ingiram quantidades enormes de álcool, fumem desmedidamente, não recorram aos serviços de saúde, se envolvam em conflitos violentos (para proteger a família ou defender perante si próprios ou perante os demais sua honra de "guerreiros" etc.) e constituam a maioria esmagadora dos efetivos militares do planeta.
Durante milênios, os grupos humanos se apoiaram na coragem desmesurada dos homens para sobreviver e prosperar. Os homens, insuflados pela eficiente cultura do machismo, eram os heróis da proteção (e da agressão contra outros grupos, quando essa agressão convinha) e do provimento do alimento obtido na caça ou, já na civilização, do alimento obtido por meio de uma série de outras atividades
(Enquanto isso, a mulher era a heroína do provimento do leite que fluía do próprio peito e, tudo indica, foi a grande responsável pela domesticação de uma série de plantas, cujo cultivo constituiria uma das mais importantes transformações da vida humana em todos os tempos: a invenção da agricultura).
O fato é que as ações do "guerreiro delirante", essa figura decisiva, até uns poucos séculos atrás, ajudaram a garantir que uma parte da humanidade houvesse sobrevivido e prosperado. Será uma coincidência que todos os grupos primitivos bem-sucedidos e todas as civilizações que prevaleceram e perduraram tenham sido, de uma forma ou de outra, machistas? Por outro lado, mesmo depois que as revoluções na tecnologia tornaram o machismo obsoleto, as ações do "guerreiro delirante" continuam fazendo vítimas, e essas vítimas são, inequivocamente, em maior escala e, na maior parte das vezes, com maior severidade, os homens.
É só consultar as estatísticas de quase todos ou de todos os países para ver quem morre mais em função de ações ou omissões associadas ao delírio de potência e à presunção de invulnerabilidade que ainda povoam a cabeça de uma quantidade gigantesca de homens.
Depois eu continuo.

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Homem: principal vítima do machismo (1)

O feminismo, assim como o senso comum, alimentam duas fantasias: a) o machismo foi uma espécie de sistema absurdo; b) as mulheres sempre foram e continuam sendo as principais vítimas do machismo.
O machismo surgiu da divisão sexual do trabalho e do sistema de compensações que essa divisão instaurou.
Em quase todas as sociedades primitivas, se não em todas, coube ao homem guerrear e caçar e à mulher cuidar das crianças; as sociedades que se tornaram sedentárias delegaram também à mulher a tarefa de cuidar do espaço doméstico.
O homem se tornou guerreiro e caçador porque, no que se refere à maioria dos indivíduos, sempre foi mais forte, mais rápido e, talvez, mais predisposto hormonalmente aos riscos próprios dos ambientes mais agressivos.
A mulher se tornou cuidadora das crianças e do espaço doméstico porque é ela a gestante e é ela que amamenta e, talvez, seja menos predisposta hormonalmente aos riscos próprios dos ambientes mais agressivos.
O homem foi sempre constrangido a exibir uma fortaleza maior do que aquela que realmente lhe corresponde; o homem sempre teve menos direito à exibição da própria fraqueza.
À mulher foi negada a maior parte do poder comunitário e doméstico; ao lado da submissão, porém, foi-lhe concedida a legitimidade do autocuidado.
Montou-se um sistema que se equilibrava sobre um princípio: quem se arrisca mais e se cuida menos manda mais.
Ele, portanto, nada tinha de absurdo; era tão-somente a expressão de uma funcional divisão sexual do trabalho, calcada nos atributos físicos médios de homens e mulheres
Esse sistema se perpetuou pela maior parte do percurso civilizatório, e ainda não foi extinto. Foi nos países ricos do Ocidente que esse sistema mais recuou, porém, mesmo aí, suas marcas ainda estão presentes.
Por que o machismo recuou?
Por causa sobretudo das revoluções tecnológicas que tiveram início na segunda metada do século XVIII e prosseguem até hoje. Essas revoluções minimizaram o papel dos atributos corporais na condução dos negócios humanos. Os cargos mais importantes e bem pagos na maior parte do mundo, apesar de ainda serem ocupados majoritariamente por homens, não necessitam de qualquer atributo específico de um corpo masculino. Ao mesmo tempo, muitas mulheres têm acesso a um sem-número de equipamentos e serviços que prescindem de sua presença no lar durante a maior parte do tempo.
Mas por que o homem é a principal vítima do machismo?
Porque enquanto o machismo vigeu como sistema legitimado socialmente, o risco das guerras e das tarefas de proteção e segurança sempre recaiu mais sobre ele. Isso significou que os homens tendiam a morrer mais precocemente do que as mulheres, porque, desde sempre, nada matou mais do que a guerra.
Mas, e agora que a tecnologia tornou o machismo um sistema obsoleto?
Ora, mesmo agora, são majoritariamente os homens que fazem a guerra e cuidam da segurança.
As mulheres vivem ainda muitos desafios e ainda sofrem a violência gerada pelo machismo.
Porém, em termos de violência, nada se compara à mortandade dos homens em conflitos internacionais.
Além disso, ainda não caiu a ficha para os homens de que os comportamentos arriscados (no trânsito, no regime alimentar, nos conflitos de interesse cotidianos, que muitas vezes degeneram em agressão) não fazem mais sentido, porque não melhoram a vida da comunidade e não trazem compensações significativas. Assim, são os homens que morrem mais no trânsito, são eles que morrem mais pelo abuso do álcool e do tabaco e pela falta de consultas preventivas aos profissionais de saúde, são os homens que morrem mais vítimas de agressões à mão armada.
Depois eu continuo.

terça-feira, 25 de outubro de 2011

Que bárbara a civilização!

Civilização é uma coisa, barbárie outra, certo?

Não. Civilização e barbárie são parte de um mesmo processo.

Claro, em condições normais ou mais aceitáveis, a barbárie é sobretudo um instrumento da civilização.

Que fique bem entendido: eu disse “sobretudo”, eu não disse “apenas”.

Isso quer dizer que, mesmo quando opera como um instrumento da civilização, a barbárie é mais que um instrumento da civilização.

A bárbarie, portanto, se justifica sobretudo, mas não apenas, como instrumento da civilização.

Pode-se dizer que todas as civilizações que prosperaram longamente e obtiveram sucesso na tentativa de repelir ou suplantar seus adversários fizeram largo uso da barbárie.

Nesses casos, a barbárie se justificou não somente pelos benefícios hauridos pelas civilizações que a empregaram; na verdade, os benefícios foram sempre mais amplos e atingiram positivamente grande parte da humanidade, sob a forma de um amplo legado no campo das artes, da engenharia, do direito, da gestão pública etc.  – e na própria forma de produzir barbárie, que por sua vez ajudaria a propiciar mais civilização.

Assim, aprendemos com os civilizados de todos os tempos um sem-número de prodígios, entre eles, a utilíssima arte e ciência do horror sobre seus adversários.

A barbárie como instrumento da civilização já é chocante. Porém, a barbárie intransitiva, a barbárie assentada em si mesma, é ainda mais chocante.

No entanto, ao que parece, a barbárie intransitiva é, mesmo no contexto da marcha civilizatória, algo inevitável.

Isso ocorre pelo simples fato de não ser possível erguer uma muralha da China entre uma e outra forma de barbárie.

Tomemos um exemplos simples. A civilização que mais profunda e sofisticadamente construiu e exaltou o discurso antibarbárie foi a chamada civilização ocidental. No entanto, o enorme sucesso alcançado por essa civilização se processou por meio da produção da barbárie em escala descomunal. Ora, não se pode dizer que toda essa barbárie tenha sido produzida cirurgicamente apenas na medida necessária para favorecer o avanço da civilização. Os exemplos de excessos, delirantes, gozosos, extáticos, são inumeráveis.

Daí resulta que os heróis da civilização são, em muitos casos, rematados genocidas; e, aparentemente, com muito prazer, em muitos casos.

A depuração da civilização dos excessos da barbárie é, normalmente, um trabalho realizado a posteriori pela historiografia dos vencedores.

Esses dias acompanhamos o extermínio de Kadafi e continuamos a acompanhar o vilipêndio de seu cadáver. Ficamos chocados. Aquilo foi barbárie instransitiva, gratuita, a barbárie pela barbárie.

Sem dúvida. Mas talvez tenha sido sobretudo um lance pró-civilização. O próprio Kadafi era ao mesmo tempo um bárbaro e um civilizador. Provavelmente, o mesmo deverá ser dito de seus sucessores, que tentarão se constituir nos novos civilizadores da Líbia.

Vamos continuar acompanhando. Deve vir muita civilização – e barbárie – por aí.

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Diferença, inovação, heterogeneidade

O longo processo de modernização, que prossegue em nossos dias, vem conferindo, desde o princípio, embora em trajetória não-linear, valor crescente à diferença.
No que se refere aos indivíduos, a diferença na identidade e na atuação pode se exercer como heterogeneidade ou inovação.
É evidente que, embora a heterogeneidade seja mais valorizada do que já foi, é, entre as duas, a inovação que desfruta de maior prestígio.
O indivíduo heterogêneo é aquele que recolhe em si, em combinação própria, traços já existentes, criados por outros indivíduos ou culturas.
O inovador cria traço inédito.
A propósito de um e outro, o comentarista típico sentencia: "Sim, sim, não há dúvida de que o heterogêneo tem lá seus méritos, afinal de contas teve independência suficiente para recolher traços identitários e atitudinais e recombiná-los de acordo com seu gosto e vontade. Porém, o inovador é sem dúvida superior, porque abre fronteiras".
Esse tipo de consideração tem dois problemas: a) o tal comentarista típico, mais ou menos explicitamente, tende a desenvolver uma postura de subserviência em relação ao inovador; portanto, seu compromisso com a inovação é essencialmente retórico, uma vez que, na prática, seu compromisso maior, identitário e atitudinal, é com a repetição, via postura subserviente; b) a heterogeneidade, além de ser por si mesma já alguma inovação, uma vez que representa recombinação única e original do já existente, tem seu valor maior na disposição existencial de trilhar caminho próprio, que pode se afirmar acima ou à margem das demandas de inovação; em outros termos, o indivíduo heterogêneo pode estar dizendo: "A força que trago em mim mesmo, ao afirmar minha heterogeneidade, é tão exuberante que se afirma como vigor que impacta e redefine o mundo à revelia de qualquer demanda por inovação".
A inovação é preciosa, e a heterogeneidade não é mera versão medíocre do diferente.
As duas formas fundamentais da diferença são, ao mesmo tempo, ponto de chegada e motor da modernização.
As sociedades que se modernizam com maior sucesso são aquelas que acolhem mais a diferença, como inovação ou heterogeneidade.
Os Estados Unidos, creio, apesar da pecha que muitos lhes atribuem como país da acriticidade, são mais avessos ao cultivo da humanidade como rebanho do que o Brasil.
No Brasil, além das religiões, diferentes ideologias – de esquerda e de direita, politicamente corretas ou incorretas – obtêm  sucesso relativamente amplo no assujeitamento dos indivíduos; quer dizer, conseguem reduzir muitos e muitos indivíduos a uma antimoderna semelhança, via repetição e homogeneidade.
Nos Estados Unidos, apesar do ativismo intenso do "politicamente correto" e do conservadorismo religioso e político, há muito mais espaço para os indivíduos criarem, via heterogeneidade ou inovação, sua própria vida.
Deve-se a isso, como uma das razões fundamentais, o fato de, aqui nos EUA, a modernização se encontrar em estágio mais avançado e a sociedade estadunidense colher mais e melhores frutos propiciados pela diferença.

domingo, 23 de outubro de 2011

A bolha da paz

A semana passada foi de badalação do novo livro de Steve Pinker. Segundo as resenhas, Pinker sustenta que nós, como humanidade, nunca fomos tão pacíficos.
Não creio que sejamos  exatamente mais pacíficos; somos, sim, mais logológicos.
Logologia é um neologismo tautológico que significa: a lógica do logos.
Logos é pensamento, palavra.
Sim, somos mais logológicos, o que quer dizer que agimos mais com base no pensamento, na palavra.
Dito de outra maneira: o conhecimento, a tecnologia, as leis, os contratos e, até certo ponto, o diálogo, tudo isso se tornou mais importante em nossa vida.
Então, somos mais pacíficos?
Bem, o conhecimento e a tecnologia podem ser utilizados a favor da paz: na medida em que são responsáveis pelo aumento da abundância entre muitos grupos humanos, liberam esses grupos humanos da necessidade de usar a força para pilhar a propriedade alheia.
As leis, os contratos e o diálogo substituem a lógica da força. Isso vale para a relação entre os cidadãos e vale também para a relação entre os cidadãos e o Estado: um número enorme de pessoas não necessita pegar em armas contra as autoridades estatais; por outro lado, onde prepondera o direito moderno, o Estado somente em situações bastante reduzidas pode utilizar a violência contra o cidadão.
De fato, muitos seres humanos se habituaram a viver diariamente de modo mais pacífico que nossos antepassados. E isso dura há várias décadas.
Ou seja, vivemos mais em paz, ampliou-se, no tempo e no espaço, a legitimidade e a vigência da paz.
Ampliou-se, eu diria, a bolha da paz.
Mas eu não diria que nos tornamos mais pacíficos.
Por quê?
Porque a logologia, se pode ser pacífica, pode também ser guerreira.
A tecnologia, na forma de armas mais destrutivas, e o conhecimento, na forma de estratégias de combate mais refinadas, podem ser – e frequentemente são – instrumentos da guerra.
As leis e contratos podem privilegiar grupos ou nações e, com isso, aumentar a tensão entre esses grupos ou nações e aqueles outros grupos ou nações que tiveram, assim, seus interesses preteridos. O aumento da tensão pode desembocar em conflito armado.
Por fim, a palavra, que pode servir ao diálogo, pode também servir à retórica guerreira.
Há pouco mais de 66 anos se encerrava a guerra mais devastadora da história; há pouco mais de 66 anos dura nossa imensa bolha da paz.
Mas, embora a paz como valor tenha se fortalecido muito, embora a irenologia (não a ciência, mas a lógica da paz) continue a conquistar muitos corações, o fato é que a guerra espreita e irrompe, ainda que, por ora, de forma limitada.
A bolha da paz, em última instância, não eliminou a escassez econômica, origem de tantos conflitos; a bolha da paz tampouco eliminou outros conflitos, latentes ou patentes, entre grupos e nações. Muitas pessoas que hoje erguem a voz pela paz podem, em outras circunstâncias, exigir e apoiar a guerra.
Em algum momento, poderemos presenciar novamente os hoje pacatos cidadãos do mundo enredados em combates sangrentos, com o concurso  singular do poder que emana do logos.

sábado, 22 de outubro de 2011

Os caras

Lula (ainda) é o cara.
Obama (ainda) não.
Lula chegou à Presidência como profeta de uma nova era e, durante a maior parte de seu primeiro mandato, decepcionou, ao optar por uma política econômica semelhante à de seus adversários.
Obama também chegou à Presidência como profeta de uma nova era e, também, durante a maior parte do seu primeiro mandato, decepcionou, ao tentar transformar seus adversários em parceiros na política econômica.
Lula, um ano antes da reeleição, lutava para restabelecer sua imagem, seriamente atingida pelo mensalão. Foi nesse processo que decidiu turbinar o Bolsa-Família.
Obama, um ano antes de sua tentativa de reeleição, tenta se restabelecer com uma mensagem básica: "Foram os republicanos que me impediram de reerguer a economia". Retoma algo da velha retórica messiânica, tenta falar ao coração dos mais pobres. Além disso, coleciona, na cena externa, alguns fatos que procura explorar como vitórias expressivas: as mortes de Bin Laden e Kadafi e o anúncio da retirada das tropas do Iraque.
Lula despertou a crítica, às vezes dura, de setores à esquerda.
Obama também.
Lula teve como adversário, em 2006, um "picolé de chuchu".
Obama também terá seu próprio "picolé de chuchu", caso Mitt Romney seja mesmo o candidato republicano.
Lula se beneficiou de uma economia que, depois de um 2005 ruim, apresentava em 2006 sinais fortes de recuperação.
Obama torce para que os tímidos resultados positivos do último mês se confirmem e, se possível, fiquem ainda melhores, daqui até o dia da eleição.
Lula tinha uma oposição ridícula e difundiu a ideia de que o Brasil não tinha alternativa.
A oposição a Obama não é tão ridícula, mas também, convenhamos, não é tão séria assim, e Obama vai, igualmente, tentar convencer o eleitorado de que ele é, se não melhor, menos ruim do que qualquer candidato republicano.
No segundo mandato, Lula teve um bom desempenho econômico em 2007 e um ainda melhor em 2008, apesar da aterrissagem da crise no fim daquele ano; e, depois de um 2009 de estagnação, totalmente desculpável em função da crise mundial, 2010 foi marcado por uma recuperação espetacular.
Lula entrou como profeta e saiu profeta.
Se Obama se reeleger, talvez a economia dos Estados Unidos apresente, durante um eventual segundo mandato, uma recuperação mais vigorosa. Aí Obama também sairá como profeta e também será o cara.
É esperar.

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Seis & meia dúzia

O Brasil deve trilhar, nas próximas décadas, o caminho do neoliberalismo ou do capitalismo de Estado?
Tanto faz.
Será?
Vejamos.
Neoliberais e capitalistas de Estado se detestam, certo?
E se detestam precisamente porque são ideologicamente incompatíveis, certo?
Neoliberais são obcecados com controle de preços, certo?
Enquanto capitalistas de Estado são obcecados com expansão da demanda agregada, certo?
Mas nossos neoliberais parecem ter aprendido a não ser tão negligentes com a expansão da demanda. Depois que governaram oito anos comprimindo o crédito e a renda, em nome do combate à inflação, colheram o desprezo de boa parte do eleitorado, que os considera elitistas e socialmente insensíveis.
Hoje, os neoliberais estão na berlinda e, caso os eleitores decidam lhes dar uma nova chance, é bom que demonstrem ter realmente aprendido a lição de que não se pode severamente achatar o mercado interno impunemente. Ou seja, se seguirem à risca os passos de FHC, serão postos na berlinda mais uma vez.
Por sua vez, nossos capitalistas de Estado parecem ter aprendido a não ser tão negligentes com o combate à inflação. Depois que passaram oito anos na oposição jogando pedra no plano Real, em nome da expansão do crédito e da renda, colheram o desprezo de boa parte do eleitorado, que os considerava (e muitos ainda os consideram) populistas e irresponsáveis, do ponto de vista monetário e fiscal.
Hoje, os capitalistas de Estado estão sob constante vigilância da mídia e de setores tecnicamente mais qualificados da classe média e, se quiserem continuar no governo, é bom que demonstrem ter realmente aprendido a lição de que não se pode deixar a inflação correr solta. Ou seja, se seguirem nesse tocante os passos de Lula, que fortaleceu o mercado interno sem descuidar do combate à inflação, terão grandes chances de prosseguir à frente do governo.
Assim, embora esbravejem loucamente uns contras os outros, neoliberais e capitalistas de Estado se tornaram, no Brasil, muito mais semelhantes do que discrepantes.
Se, do ponto de vista da política econômica, as diferenças entre as duas principais forças políticas do Brasil se tornaram menos importantes, o que pode fazer a diferença na política brasileira?
Bom, isso é assunto para outra crônica, outro dia.


quinta-feira, 20 de outubro de 2011

O que muda o mundo

A "Primavera Árabe"; as manifestações de estudantes no Chile; os protestos em Londres, antes violentos, agora pacíficos; a mobilização contra o desemprego em Madri, que já dura meses; as greves e passeatas em Atenas contra a "Troica" (FMI, Banco Central Europeu e Comissão Europeia); o "Ocupar Wall Street", que já conta com a participação de 900 cidades... Tudo isso está sacudindo o mundo e impulsionando uma nova onda de transformações em escala global, certo?
Hum, não sei...
Claro que esses fatos têm sua relevância, mas convém não exagerar.
Afinal, o que muda o mundo?
Muito analistas, historiadores e ideólogos repetem ad nauseam que "os anos 60" mudaram a fisionomia do mundo, com suas lutas políticas e a chamada Contracultura.
Será?
Bom, é inegável que "os anos 60" foram muito importantes. Esses foram anos, por exemplo, de urbanização acelerada e desaceleração das taxas de fecundidade em boa parte do planeta.
Mas quais as forças motrizes dessas e de outras mudanças?
Destaco uma: a evolução do conhecimento e da tecnologia.
Enquanto muitos manifestantes consumiam seu tempo em protestos "nos anos 60", outros jovens optavam por priorizar o estudo e a pesquisa.
Foi esse empenho intelectual que redundou, na década seguinte, numa série de fenômenos que, no caso de alguns, têm, até hoje, enorme importância para a vida, talvez, da maioria pessoas.
No Brasil, foram os esforços desenvolvidos "nos anos 60" que resultaram, "nos anos 70", no início da exploração de petróleo em alto-mar e no processo continuado de aumento descomunal da produtividade agropecuária. Nunca é demais lembrar que nossos êxitos socioeconômicos nos últimos anos e as boas perspectivas para as próximas décadas estão lastreados, em larga medida, em petróleo e agropecuária.
Nos Estados Unidos, "os anos 70" assistiram, só para citar um exemplo, à invenção do computador pessoal, desdobramento de êxitos anteriores no campo da informática.
A multidão de estudantes e pesquisadores, devotados diariamente à reflexão e à inovação, representa um contingente muito mais amplo e muito mais estável e permanente que qualquer movimento político, por mais massivo e duradouro que seja. E, me inclino a crer, seus resultados são também mais impactantes, já que mais estruturantes e longevos, que o das lutas políticas.
Mesmo quando se pensa na democracia, como regime que favorece a livre expansão das ideias, é preciso convir que sua implantação ocorreu em sociedades com longa tradição intelectual humanista e pró-democracia e com retrospecto considerável de desenvolvimento científico e tecnológico.
A democracia, além de filha do progresso do pensamento, é o regime político que reconhece a primazia do conhecimento sobre a política, porque nela as pessoas, sem precisar lutar diariamente por isso, já têm à mão a necessária liberdade para estudar, pensar, experimentar.
Quando, porém, sociedades inteiras optam pela primazia da política sobre a reflexão e a inovação científica e tecnológica, como aconteceu em todas as experiências do chamado "socialismo real", e prossegue até hoje em Cuba e na Coreia do Norte, os resultados são sem dúvida impactantes e longevos, embora catastróficos.
Mas não é esse tipo de mudança que estamos buscando, não é mesmo?

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Welfare, Warfare

No debate de ontem entre os presidenciáveis republicanos, estabeleceu-se uma polêmica entre Ron Paul e Herman Cain em torno da seguinte questão: as pessoas que tomaram empréstimos imobiliários, muito além de suas possibilidades de pagá-los, são vítimas ou estão entre os co-responsáveis pela crise de 2008?
Indiscutivelmente, a maioria dessas pessoas compõe o grupo de perdedores da crise; mas o fato de serem perdedores as torna inocentes?
Bem entendido, muitas dessas pessoas não foram somente ingênuas ao supor que o preço de "seus" imóveis continuaria subindo indefinidamente, o que lhes permitiria, no limite, vendê-los para pagar o empréstimo – elas foram enroladas e induzidas a assinar contratos, aparentemente vantajosos, que eram, na verdade, draconianos.
Porém, mesmo assim, mesmo na situação em que financiadores inescrupulosos e experimentados induziram os tomadores de empréstimo a um contrato cruel, mesmo numa situação dessas, os tomadores de empréstimos são somente vítimas?
Será que, ao se comprometer a pagar o que poderia vir a ser impagável, esses tomadores de empréstimo não sabiam que estavam entrando numa aventura?
Será que não agiram como aquelas pessoas que pensam: "sim, estou sendo irresponsável, mas nada vai dar errado e, se der, alguém vai me salvar"?
Há uns 35 milhões de anos, duas linhagens de mamíferos sobreviveram à extinção dos dinossauros. Uma delas, muito mais tarde, em complexo processo evolutivo, produziria o Homo sapiens sapiens.
Genericamente se diz que essa linhagem sobreviveu e evoluiu porque era mais adaptável aos desafios do meio. Especificamente podemos dizer que esses animais sabiam combinar, melhor que muitos outros, risco e prudência; ou seja, sabiam não apenas cooperar, mas também competir, o que equivalia a evitar ou enfrentar, com alta taxa de sucesso, variados e numerosos inimigos.
"Quem não arrisca não petisca", diz o ditado; mas um outro ditado poderia dizer: "Quem se arrisca sem pensar, riscado será".
O Estado de bem-estar social, invenção europeia que amadureceu no pós-II Guerra, veio para atenuar a famosa guerra de todos contra todos e estabelecer relações sociais menos à base do ser humano como lobo do ser humano; atenuar, é óbvio, não significa extinguir. Welfare (bem-estar) não extingue warfare (estado de guerra), e quem quiser continuar vivo e prosperando que aprenda, de preferência com, mas também sem ajuda alheia, a se arriscar na hora certa e a responder plenamente por todos os seus atos.

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Foi ruim, mas foi bom

Uma das contradições mais curiosas de admiradores brasileiros dos Estados Unidos é que essas pessoas repudiam o nacionalismo, como uma forma de pensar e agir supostamente atrasada. Ora, mas esses compatriotas parecem se esquecer de algo elementar: os Estados Unidos só chegaram aonde chegaram à base de fervoroso – e às vezes furioso – nacionalismo.
Porém, meus compatriotas do time oposto, os antiamericanos, não estão livres de contradições igualmente curiosas. Por exemplo: apoiam o movimento "Ocupar Wall Street". Ok. Esse movimento, porém, é contra a influência das grandes corporações no governo. Ora, mas a maioria dos nossos antiamericamos não parece ver problema nenhum na enorme influência que a megacorporação brasileira do petróleo, a Petrobras, exerce sobre o governo brasileiro. É só dar uma examinada no novo marco regulatório do pré-sal e constatar como ele foi feito sob medida para o bem da Petrobras e não necessariamente para o bem do povo brasileiro. O governo brasileiro tem precária autonomia, se tem alguma, diante da "nossa" gigante do petróleo.
Nossos antiamericanos, na mesma linha, bradam a plenos pulmões contra a "era da desregulamentação", mais uma das queixas do "Ocupar Wall Street". De fato, muita coisa errada aconteceu no mercado financeiro dos Estados Unidos, e a frouxidão da regulamentação favoreceu a fraude e o endividamento irresponsável – propiciou inclusive recompensas milionárias para fraudadores e emprestadores irresponsáveis. Porém, foi nessa mesma "era da desregulamentação" que se acelerou o crescimento econômico dos emergentes e se assistiu à ascensão social de muita gente nesses países. Como isso ocorreu? Em parte, assim: o afrouxamento do crédito impulsionou o consumo nos Estados Unidos; o consumo nos Estados Unidos impulsionou o investimento e a produção na China; o faturamento da China com as vendas para os Estados Unidos se transformou em nova fonte de crédito, não só para os Estados Unidos, mas também para, por exemplo, a América Latina em geral e o Brasil em particular; além disso, o investimento e a produção na China demandaram mais produtos primários da América Latina em geral e do Brasil em particular, o que melhorou a situação econômico-financeira da região e do nosso país.
Parte das conquistas que todos os países envolvidos experimentaram com a "era da desregulamentação" foi destruída pela crise de 2008 e a recessão em que ela desembocou. Só parte. Muita gente, mundo afora e Brasil adentro – haja vista nossa classe C –, continua surfando nos benefícios gerados pela "era da desregulamentação". E muita gente parece se esquecer que o que foi ruim também foi bom.